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O Fascismo da Ambiguidade

10 May 2021

O Fascismo da Ambiguidade
PHILOSOPHY
POLITICS

Watching TV [Assistindo TV], Teimuraz Gagnidze, 1999, Georgia; Crédito de imagem: Saatchi

Treche do O fascismo da ambiguidade: um ensaio conceitual por Marcia Cavalcante Schuback, Editora UFRJ, 2021.


“O fascismo da ambiguidade de todos os sentidos e valores encontra-se hoje por toda parte. A todo momento e em qualquer situação, vemos sentidos oscilarem entre direito e avesso, numa ambiguidade crescente que faz aparecer, de maneira espantosa, como até mesmo a polarização de sentidos, valores e posições mais aciona a ambiguidade dos sentidos do que a sua distinção e demarcação.”

As reflexões de Pasolini sobre o “neocapitalismo televisual” fazem parte dos grandes debates sobre os “meios de comunicação de massa”, o “sistema dos mass-media”, a questão da tecnologia e da informação, a revolução da cibernética e das novas técnicas de controle e vigilância, que desde a década de 60 e 70 não cessam de ser debatidos. Ao surpreender a forma imprevisível do “neofascismo” do poder do consumo como um “neocapitalismo televisual”, Pasolini viu com clareza que o “capitalismo planetário”, não mais produtivo, mas financeiro e monetário, é um capitalismo tele-midiático. Para ele, o neofascismo não precisava mais de nenhuma forma ou valor do fascismo histórico: tradição, família, religião, pois ao arrancar do homem o homem, do corpo o corpo, da alma a alma, o neofascismo da sociedade de consumo e cultura de massa realizava o que nenhum conteúdo ideológico do fascismo anterior havia conseguido: a mutação letal da sensibilidade e consciência humanas. Mas como então compreender o reacionarismo e o retrocesso que acompanham hoje o que estamos chamando de fascismo? Num mundo do vale tudo universalizado, como entender o discurso moralizante e conservador que circula por toda parte? Com efeito, devemos partir do que, à primeira vista, constitui uma surpreendente contradição e que deve ser colocado como uma questão orientadora: como é possível que o capitalismo neoliberal, financeiro, impensável sem as novas formas de tecnologia informacionais, da robótica, dos algoritmos, das redes sociais, do espetáculo midiático, da inteligência artificial, ou seja, de um capitalismo sem fronteiras, essencialmente “internacionalista” – pois hoje o poder encontra-se inteiramente nas mãos digitais de poderosas conglomerações inter-multi- e transnacionais, conviva tão bem agora com governos autoritários, nacionalistas, protecionistas, patriotas? Por que “nacionalismos” na situação de um transnacional “mundial i-mundo” (Granel, 1982, p. 59), na expressão do filósofo francês Gérard Granel, onde as nações não passam de “sucursais do capital mundial”? (ibid.), como mostra de maneira lancinante o Brasil de hoje? Essas perguntas se colocam quando assumimos que, para compreender a nova forma de fascismo que hoje nos assola, é preciso compreender a nova forma de “capitalismo”, de regime de mundo que o provoca. Não é possível conceber um sem conceber o outro. Nosso ponto de partida é que, do ponto de vista de sua lógica interna, o capitalismo neoliberal, tecno-midiático e financeiro tem como seu sistema o fascismo e não que o fascismo seja uma força a ele aliada. Em sua nova forma, o fascismo expõe de que modo, na era da técnica planetária, o homem deixa de ser o sujeito da história, pois o novo sujeito é a técnica, o capitalismo tecno-midiático. Se o Estado total dos sistemas totalitários deve ser considerado como Estado-sujeito (Lacoue-Labarthe & Nancy, 2002, p. 24), hoje a técnica total é a técnica-sujeito.


Sabemos que a defesa fascista da soberania nacional contra a defesa internacional da Amazônia e das nações indígenas mostra de maneira escancarada como a política protecionista do governo é o modo de “o Brasil” colocar o mais rápida e amplamente possível a “sua” Amazônia-mercadoria à venda nos “Amazon” do mercado mundial. Não há na verdade contradição entre capitalismo neoliberal, que se define como anti-estatismo absoluto, e estatismo fascista, pois hoje o Estado já é uma sucursal do capital neoliberal, o Estado já é ele mesmo anti-estatista. A necessidade da presença forte do Estado se explica pela necessidade de cumprir a privatização do Estado da maneira mais rápida e cabal, sem mais delongas e negociações políticas. O discurso antiglobalizante do governo fascista brasileiro não é de modo algum antineoliberal; é ao contrário um discurso em parte mais neoliberal do que o neoliberalismo propulsor da globalização.


A tese que gostaria de esboçar é de que a forma “imprevisivelmente nova” do fascismo que hoje estamos a testemunhar é a forma da ambiguidade de todas as formas. É um fascismo que se articula na ambiguidade e oscilação de todo sentido e valor de maneira que nessa oscilante ambiguidade o próprio sentido e o valor perdem valor e sentido.

A meta desse novo tipo de fascismo é bem clara e precisa: é a “mobilização total” – o termo de Ernst Jünger continua relevante – para uma política tecno-neoliberal midiática cuja ferocidade aumenta com o esgotamento acelerado dos recursos naturais, humanos e não-humanos do planeta. O fascismo nunca é ambíguo e suas metas inequívocas. A “necessidade” de políticas nacionalistas, protecionistas, reacionárias e restritivas, de construção de muros físicos e discursivos, mentais e sensíveis se esclarece por esta meta, de conduzir o neoliberalismo ao seu máximo, antes que “o mundo acabe”, de tornar o apocalipse o seu exército. Para isso precisa substituir o desejo de transformação por um desejo de extermínio, “vamos acabar com tudo isto”. O Estado do fascismo atual é o Estado que, na sua exacerbação aparentemente anacrônica, esvazia o sentido de Estado e operacionaliza a implementação do neoliberalismo como a única política viável para “salvar” o país do “colapso”, levando o colapso para o colapso. Sob o manto discursivo de uma limpeza do empreguismo e funcionalismo público corrupto, a política do Estado é feita para agilizar o mais possível tanto o empreendorismo de todo trabalhador, a anulação de toda lei trabalhista, a privatização de todas as empresas estatais, a terceirização da economia, etc, como o empreendorismo estatal, ou seja, a transformação do Estado em empresa. É a necessidade de esvaziar o sentido de Estado pelo excesso de uma política de Estado contra o Estado. A outra necessidade é a de o Estado minar o espaço público, de a politica minar e esvaziar o sentido de política, de minar os movimentos sociais e expressões de resistência, combinando mecanismos tradicionais de tortura, perseguição, extermínio – como no caso de Marielle Franco e tantos outros - com o fomento da privatização e privação do espaço comum. É o que se faz mediante o excesso das redes sociais, da continua “selfização” de cada individuo, identificado com sua imagem para um consumo, que hoje não é só das coisas, mas o consumo das imagens das coisas e sobretudo de si mesmo. Narciso não saberia mais se reconhecer no narcisismo contemporâneo virtual. Um verso do coro da Antígone de Sófocles, muitas vezes esquecido em várias análises dessa peça que não envelhece, exprime de maneira lapidar o que acontece: hypsípolis, apolis, excesso de polis, de política, esvaziamento da polis, da política. Excesso de sentido, esvaziamento de sentido: esse é o ritmo de uma operação de sentido, que esvazia o sentido pela sua exacerbação, pela sua hipérbole. Esse é no meu entender o principal motor da nova forma de fascismo que hoje nos assola e abate. A meta inequívoca do neofascismo encontra na ambiguização de todos os sentidos e valores o seu método.


A realidade hoje confirma que o fascismo vive muito bem dentro de um regime democrático não só porque se elege o fascismo por via democrática ou apenas porque fascismo e democracia seriam dois lados de uma mesma moeda, como sugeriu Gramsci. O novo modo de convivência entre fascismo e democracia se mostra bem claro, por exemplo, no Brasil, em parte porque, após décadas de autoritarismo e ditadura militar, as instituições democráticas ainda se encontram em vias de democratização e, em parte, porque em sua nova forma, o fascismo de hoje se apresenta com a pretensão de ser mais democrático do que a democracia. Assim, se a democracia tem como “ponto fraco” o sistema de representação, já que nela muitos se sentem sempre ainda não representados, o fascismo de hoje se proclama mais democrático que a democracia, pois exerce um poder que “fala” com cada indivíduo “diretamente” pelos twitters e whatsapps, não mais precisando de representantes, pois a democracia se quer passar agora na apresentação midiática de tudo o que acontece e não meramente por uma representação nunca suficientemente representativa. Assim, cada um se ilude com a possibilidade de um acesso direto ao poder. Ademais, se democracia significa o poder do voto, cada indivíduo se sente “empoderado” ao votar continuamente com seus likes diários, minuto a minuto, para tudo e todos. Com as “curtidas” e “não curtidas” em cada segundo da vida, a votação continua dá impressão de um “agenciamento” hiperativo numa democracia exercida continuamente nas redes. Com isso, iguala e confunde o voto de consumidor com o sentido político de voto, o voto como cidadão. Votando em tudo o tempo todo, é o sentido de voto que se esvazia quando a cidadania se mistura com a atividade de consumo. Exerce-se a cidadania como se consome e o direito à cidadania não mais se dissocia do direito ao consumo. Assim é o próprio votar hiperbólico que anula e esvazia o sentido político do voto. Por isso, o fascismo de hoje precisa delirantemente de votos. Se o fascismo histórico se vangloriava por conseguir o que nenhuma democracia representativa foi capaz, isto é, “ser” diretamente o povo e não apenas representá-lo, mediante uma identificação do povo com o seu líder ou “Duce”, hoje a rede social parece conseguir finalmente realizar esse “desejo”, mediante o contato midiaticamente “direto” entre chavões de toda espécie e “cada um”. Em lugar da histórica mobilização das massas, as “redes” atraem indivíduos atomizados, consumidores isolados e empobrecidos para ligações sem ligações, relações sem relações, sentidos sem sentidos, valores sem valores.



Crédito de imagem: UFRJ

A democracia se define como um regime baseado na liberdade de expressão. O fascismo de hoje quer se apresentar como exercendo mais liberdade de expressão do que nas democracias liberais clássicas por ter a “coragem” de dizer o que quiser na cara de todo mundo. Em vez de proibir inteiramente a liberdade de expressão e infringir de maneira cabal os mecanismos de censura bem conhecidos do tempo da ditadura militar, o governo fascista se vangloria de usar as palavras mais baixas, vulgares, violentas, humilhantes, cheias de ódio, homofóbicas, racistas, ordinárias, etc. Substitui o sentido de liberdade de expressão por uma prática de libertarianismo de expressão, orgulhando-se da coragem de dizer o que o politicamente correto censura dentro de si mesmo. Assim, é o politicamente correto que exerce censura, a auto-censura, ao passo que a fala fascista aparece como excesso da liberdade de expressão. Nessa exacerbação do sentido de “liberdade de expressão”, o sentido de liberdade de expressão é que se vê esvaziado de sentido. Excesso de sentido esvazia o sentido. Essa pretensa democracia mais democrática do que a democracia – o novo fascismo - vive do esvaziamento do sentido de povo mediante a substituição da ideia de povo pela sua privatização e privação, quando tudo se passa diretamente entre o meio e cada um. Hoje, povo é amostra e população estatísticas, soma de átomos isolados e isolamentos atomizados, reunidos em redes e grupos mediados pelo “virtual” e virtualizados pelo “meio”.

Para a nossa discussão sobre a nova forma de fascismo que hoje ultrapassou o neofascismo formulado por Pasolini, cabe observar o desenvolvimento das novas tecnologias de informação e o sentido de elo e ligação que nelas se operacionalizam. As redes sociais constituem o meio mais potente para realizar e estabelecer laços sem laços, relações sem relações, redes sem encontros. É importante perceber que a hiperconectividade gerada pelas redes desconecta precisamente ao hiper-contectar. A exacerbação do sentido de elos, laços, redes, conexões – “links”, “networks” esvazia, pelo excesso, o sentido de relação. É a hipérbole do sentido de relação que esvazia o sentido de relação e da relação dos sentidos. Com isso, tanto o entre nós, espaço aberto do em comum, mais decisivo para uma politica viva e livre do que qualquer demarcação de um espaço comum, se vê privatizado e privado, pois o contrário do entre não é o junto mas a hiperpolarização; (1) como também, o espaço da solidão de cada um, o espaço da criação se vê privatizado e privado por se confundir com o isolamento que inclui ou exclui cada um do mercado e suas imagens. Com a pandemia essas e muitas outras questões aqui discutidas se acirraram.


Por que “nacionalismos” na situação de um transnacional “mundial i-mundo”, na expressão do filósofo francês Gérard Granel, onde as nações não passam de “sucursais do capital mundial”? como mostra de maneira lancinante o Brasil de hoje?

O novo fascismo continua a exercer as divisas milenares de todo totalitarismo: divide et impera, dividir para imperar e também panem et circenses, pão e circo. A diferença é que ele as intensifica ao torná-las ambíguas, pois hoje o fascismo reúne para dividir e assim estimular ainda mais frontalmente que cada um sirva voluntariamente ao tirano – a neoliberalização de todos os sistemas – e que todo pão se transforme em circo, ou seja, toda realidade sobretudo a do ganha pão se transforme em espetáculo. Assim, a democracia vai se dissolvendo como que “naturalmente” (o que hoje significa o mesmo que artificialmente) não por decreto ou ato institucional (embora vários atos e decretos também estejam sendo passados no congresso enquanto escândalos midiáticos ocupam as primeiras páginas) mas ao ser preservada como uma forma vazia pela desarticulação crescente e a dissolução contínua do comum e das práticas de inclusão. A viralização que dissemina e assim exacerba os sentidos não só os esvazia como, nesse oco do sentido, operacionaliza a naturalização de todo tipo de discurso, sobretudo os discursos de ódio e exclusão. Os mecanismos linguísticos de naturalização do racismo e segregação excludentes estudados tão atentamente por Victor Klemperer em sua importante obra, LTI: A linguagem do Terceiro Reich (Klemperer, 2009 ), encontram hoje nas redes sociais e no algoritmo robotizado das mensagens, um meio de naturalização incontrolável. Pela via do “humor” e das “piadinhas” viralizadas em memes e mensagens, o ódio passa a se tornar tão natural quanto os artifícios de sua produção. A “perda da capacidade linguística” observada por Pasolini, enquanto marca do neofascismo televisual, hoje se viraliza e naturaliza pela continua produção de novas palavras e expressões, pelas quais o inaceitável se torna o mais natural.

O que Pasolini havia visto como o acontecimento de “alguma coisa” e que testemunhou com o desaparecimento dos vagalumes da paisagem italiana, se explicita cada vez mais como o acontecimento universal de toda coisa, sentido e valor transformarem-se em qualquer coisa, em qualquer sentido e qualquer valor, esvaziando tanto os sentidos e valores das coisas como o sentido e o valor do próprio sentido e do valor. É o que podemos chamar de “qualquerização” de cada coisa. Com isso, o sentido de cada coisa e cada um, o sentido do singular se dissipa, pois o cada um se confunde agora com qualquer um. Isso é o que o avanço das tecnologias de informação, o desenvolvimento da inteligência artificial, da sociedade dos numéricos consegue naturalizar e assim universalizar e totalizar. A tese que gostaria de esboçar é de que a forma “imprevisivelmente nova” do fascismo que hoje estamos a testemunhar é a forma da ambiguidade de todas as formas. É um fascismo que se articula na ambiguidade e oscilação de todo sentido e valor de maneira que nessa oscilante ambiguidade o próprio sentido e o valor perdem valor e sentido. Ambiguidade diz aqui esvaziar ao tornar todo sentido equivalente a qualquer coisa. É por essa ambígua oscilação e oscilante ambiguidade onde todas as fórmulas e expressões podem ser invertidas e pervertidas, onde todo sentido e valor pode ser virado contra si e contra qualquer outro que se torna possível não apenas a “servidão voluntária” de todos à tirania de uma unidade aniquiladora de toda unidade viva, evocando o conceito e as discussões clássicas de Etienne de La Boétie (1976), mas igualmente os novos mecanismos de poder, controle e censura. É essa dinâmica do sentido que estou chamando aqui de fascismo da ambiguidade.


Se o Estado total dos sistemas totalitários deve ser considerado como Estado-sujeito, hoje a técnica total é a técnica-sujeito.

O fascismo da ambiguidade de todos os sentidos e valores encontra-se hoje por toda parte. A todo momento e em qualquer situação, vemos sentidos oscilarem entre direito e avesso, numa ambiguidade crescente que faz aparecer, de maneira espantosa, como até mesmo a polarização de sentidos, valores e posições mais aciona a ambiguidade dos sentidos do que a sua distinção e demarcação. A própria oscilação do sentido de “fascismo” testemunha a contínua ambiguização dos sentidos: como falar de fascismo se os “duces” de hoje não passam de caricaturas de fascistas passados, paródias de ditadores? Por toda parte, caricatura da caricatura, idolatria de idolatrias, máscara de máscaras, paródia de paródia, tudo intencionalmente encenado no modo de um piloto automático, que permite dizer que se trata tanto de caricatura como de não caricatura, tanto de máscara como de não máscara, tanto de fascismo como de democracia, pois no mundo da imagem, onde tudo é o que não é, o não ser se apresenta como sendo não ser e não como o que se esconde por detrás de ser, tudo é por definição ambíguo, uma face de Jano, a face de duas faces. No mundo da oscilação ambígua e da ambiguidade oscilante de sentidos, que é o mundo da imagem da imagem, nada mais se esconde, tudo se exibe e mostra na cara de todo mundo, inclusive o esconder dos sentidos e intenções.

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